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Homilia de Jorge García: 48 anos do massacre de cinco palotinos na Argentina
A celebração eucarística dos 48 anos foi celebrada na noite de 04 de julho de 2024, na Parroquia San Patricio, no bairro Belgrano, em Buenos Aires, Argentina.
Segue na íntegra a homília proferida pelo Arcebispo de Buenos Aires, Dom Jorge García Cuerva:
Jesus entrou no barco, atravessou o lago e voltou para sua cidade. Depois apresentaram-lhe um homem paralítico deitado numa maca. Vendo a fé daqueles homens, Jesus disse ao paralítico: “Tem confiança, filho, os teus pecados estão perdoados”. Alguns escribas pensaram: “Este homem está blasfemando. Jesus, lendo seus pensamentos, disse-lhes: “Por que vocês pensam o mal? O que é mais fácil dizer: “Seus pecados estão perdoados” ou “Levante-se e ande”? “Para que saibais que o Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar pecados”, disse ele ao paralítico, “levanta-te, pega na tua maca e vai para casa”. Ele se levantou e foi para casa. Quando a multidão viu isso, ficou apavorada e glorificou a Deus por ter dado tal poder aos homens (Mt 9,1-8).
Apresentaram-lhe um homem paralítico deitado numa maca. E o evangelho diz: “Quando viu a fé daqueles homens”. Parece que Jesus estava mais interessado na fé daqueles que carregavam a maca do que no próprio paralítico. E essa fé tinha que ser vista, tinha que ser muito perceptível e, portanto, a atenção do Senhor.
Tinha que ser uma fé centrada em Cristo, centrada em Jesus: por isso vão ao seu encontro com a confiança de que Ele poderá fazer algo pelos doentes. Uma fé comunitária: várias pessoas carregam a maca. Uma fé comprometida: não se limitam a acreditar em Deus, traduzem-no em obras: concretizam o mandamento do amor. Uma fé ousada, abrem caminho entre a multidão que segue o Senhor, ousam mostrar-se necessitados da ajuda de Deus, não se importam com o que vão dizer.
Esta deve ter sido a fé dos nossos irmãos Palotinos, Padres Alfredo Leaden, Pedro Dufau e Alfredo Kelly e dos seminaristas Salvador Barbeito e Emilio Barletti. A sua fé também chamou a atenção no seu momento histórico e continua a fazê-lo hoje, 48 anos depois.
Uma fé muito centrada em Jesus, daí a insistência do Padre Dufau na oração como forma de comunicar com o Senhor; (e cito literalmente): “Infelizmente, ainda existe a crença, entre muitos católicos praticantes, de que rezar é algo típico de frades e freiras. Além disso, hoje é fácil ver que os fiéis, mesmo os bons, devido a esta tendência de secularização de todas as actividades humanas, estão gradualmente a banir da sua vida a oração pessoal. E ainda assim, sem oração não há comunicação com Deus. E sem comunicação, o Senhor não será para nós mais do que uma ideia imprecisa ou uma imagem vaga. Me pergunto se existe possibilidade de amar, até a fidelidade total, uma imagem vaga ou uma ideia imprecisa.”1
Uma fé comunitária: porque, como disse o Cardeal Bergoglio, “juntos viveram, juntos morreram”.2 Não viveram a sua fé de forma individualista ou privada, fizeram-no tão unidos que até misturaram o seu sangue, o sangue dos irmãos.
Uma fé comprometida com o seu tempo, como disse Salvador Barbeito: “Todos os anos, a cada passo do tempo, devemos repensar a fidelidade da nossa vocação como resposta às necessidades da Igreja em cada época histórica”.
Uma fé ousada, mas não corajosa como os super-heróis dos quadrinhos; uma fé muito humana com as fragilidades e vulnerabilidades que todos temos; expresso de forma tão pungente pelo Padre Kelly três dias antes do assassinato: “Tive uma das mais profundas experiências de oração. Durante a manhã percebi a gravidade da calúnia que circula sobre mim. Ao longo do dia tenho percebido o perigo que minha vida corre. À noite rezei intensamente, no final não sabia muito mais. Acredito que tenho estado cada vez mais tranquilo diante da possibilidade da morte. Chorei muito, mas chorei implorando ao Senhor que a riqueza da Sua graça que Ele me deu para viver acompanhasse aqueles a quem procurei amar, lembrei-me também daqueles que receberam graças através da minha intenção, chorei muito por ter que deixá-los. Nunca duvidei que foi Ele quem me concedeu a graça.”3
O texto do evangelho prossegue dizendo que quando Jesus perdoou os pecados do paralítico, alguns escribas pensaram: “Este homem está blasfemando”. E Jesus, lendo seus pensamentos, lhes dirá: Por que vocês pensam errado? Pensar e falar mal dos outros também foi o que sofreram os nossos servos de Deus, foi como matá-los novamente. Como disse o Papa Francisco referindo-se à pessoa de São Óscar Romero: “Depois de morrer foi difamado, caluniado, sujo, ou seja, o seu martírio foi continuado até pelos seus irmãos no sacerdócio e no episcopado. Só Deus conhece as histórias das pessoas e quantas vezes, pessoas que já deram a vida ou que morreram, continuam a ser apedrejadas até a morte com a pedra mais dura que existe no mundo: a língua.”4
Jesus então diz ao paralítico: “Levante-se”. Incentiva você a se levantar e andar.
Levantem-se, como aquele tapete vermelho, cor de sangue, orgulhosamente erguido no oratório com as marcas das balas que perfuraram os corpos dos nossos irmãos que hoje recordamos.5 Levantem-se apesar das dificuldades; defender a verdade e a justiça; em pé, embora nossas pernas doam e a paralisia pareça vencer. De pé, como Alfredo, Pedro, Alfie, Salvador e Emilio que fecundaram a nossa Igreja com o seu sangue. Permanecendo como Maria aos pés da cruz.
Porque encarnaram as palavras do documento de Aparecida quando diz: “A vida aumenta com a doação e enfraquece com o isolamento e o conforto. (…) Vivemos muito melhor quando temos liberdade interior para dar tudo: “Quem valoriza a sua vida terrena, perdê-la-á” (Jo 12,25). Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: que a vida se realiza e amadurece à medida que é dada para dar vida aos outros. Em última análise, essa é a missão.”6
Essa era a sua missão há 48 anos. Essa também é a nossa missão hoje, dar vida!
Mons. Jorge García Cuerva, Arcebispo de Buenos Aires, Argentina
4 de julho de 2024
Tradução: Pe. Judinei Vanzeto, SAC
Crédito foto: Palotinos por la Memoria, la Verdad y la Justicia
Notas:
1. DUFAU, Pedro, Homilía La Eucaristía, agosto 1973 en Testigos de la fe en Cristo, con la palabra y con la sangre, Buenos Aires 2023.
2. BERGOGLIO, Jorge Mario, Homilía 25 años de la masacre de San Patricio, Buenos Aires. Julio 2001.
3. KELLY, Alfredo José, Diario personal, 1 de julio 1976.
4. FRANCISCO, Discurso a una peregrinación de la república de El Salvador, Ciudad del Vaticano, abril 2015.
5. Cfr. EGUÍA, Enrique, Homilía 47 aniversario de la masacre de San Patricio, Buenos Aires, julio 2023.
6. V CONFERENCIA GENERAL DEL EPISCOPADO LATINOAMERICANO Y DEL CARIBE, Documento de Aparecida
360, Aparecida 2007.